segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

PROBLEMAS EM POTENCIAL

Resisti muito para publicar o seguinte texto porque o efeito que causa ler historias como esta anda muito distorcido, lembrei-me de uma das frases que constam nos muros da minha residência. “O que precisamos é de odio, pois dele nascerão nossas idéias” Jean Jenet.

Houve uma época, que o fato de ter que me adaptar às condições de trabalho que uma pessoa normal estava acostumada, se desenhou na minha vida a título de imposição. Nada nem ninguém, até então, havia conseguido fazer com que eu desistisse de levar a vida que eu queria. Decidi aceitar o desafio e esquematizei, como qualquer pessoa nas minhas condições, um jeito para driblar os possíveis obstáculos que enfrentaria.

A rotina não era fácil, não podia beber água e isso num lugar como a Amazônia é quase um suicídio a conta gotas, comer também era algo que evitava durante o dia. De noite chegando em casa comia algo em companhia do meu filho. Tomava todo o liquido poupado, para despejá-lo logo mais na madrugada, com o auxilio de diuréticos. Em suma, também não dormia. Pelo menos não da maneira que deveria.

Assim, passaram-se vários anos, sentia-me satisfeita principalmente em derrubar as inúmeras teses familiares e extra familiares de que eu não conseguiria. Lá pelas tantas, entrei num ramo de negócios paralelo que ocupava as poucas horas vagas que eu tinha e entre o trabalho formal e o informal eu me debruçava nos livros que eu gostava de ler na tentativa de galgar mais um degrau na minha instrução – o mestrado.

Foi nesse preciso momento – pós prova do mestrado - dia comum, já cansada demais para qualquer coisa, sem ter visto o dia escurecer percebi por conta do incômodo e das dores, que uma das minhas pernas havia aumentado de tamanho escandalosamente, em vão esperei que passasse, fiquei em repouso durante alguns dias esperando uma melhora, mas nada aconteceu de bom a seguir.

No quarto dia desisti da espera, aguardei que meu filho chegasse do colégio e assim que ele chegou e almoçou pedi a ele que me acompanhasse ao pronto socorro, estava me sentindo muito mal. O inchaço provocava um incômodo até pra ficar sentada, sentia uma dor em toda a perna como se estivesse a ponto de explodir, meu pé formigava e ficava quase irreconhecível de escuro. Pensei no dia em que isso tudo começara, foi num dia daqueles em que o tempo não parece alcançar para todas as coisas que tem que ser feitas. Havia dado aula de manha e ido direto para o outro lado da cidade para prestar um exame na seleção do mestrado que havia escolhido. Já no meio da prova senti que devia me apressar pois a dor estava aumentando, e com ela a concentração diminuindo. Infelizmente pelas normas da prova não poderia sair da sala enquanto não passassem as 4h destinadas para tal. Tive que esperar, não podia ligar para avisar que precisava sair dali assim que fosse liberada. Por conta disso tive mais uma hora de espera na frente da instituição. Quando a carona chegou estava numa situação de urgência total. Tivemos que enfrentar o transito e atravessar a cidade para finalmente chegar em casa.

No dia que aceitei o fato de ir ao pronto socorro tive a noção exata do dano que havia sofrido, estava com uma trombose na perna esquerda. Tudo que eu fizera – o uso de diuréticos, o uso de cortisona que eu tomava para controlar a asma, o tempo demais ficando sentada, a má alimentação, o stresse do dia-a-dia, haviam se somado num coagulo que estava impedindo a passagem de sangue na minha perna.

Em conversa com o médico que me recebeu tive a oportunidade de verbalizar os motivos de tudo que me acontecera. Ao questionar-me a respeito do uso dos diuréticos, o uso dos corticóides, a má alimentação. Eu expliquei: - Acontece que nenhuma das instituições em que trabalhava tinham banheiro adequado para pessoas como eu. Se eu tivesse que entrar no banheiro acabaria criando toda uma situação desagradável e constrangedora tanto para mim como para ela mesma. Ninguém vai querer ficar com alguém que promova situações desse porte. Seria preciso da ajuda de alguém e a improvisação de alguns apetrechos para conseguir ter acesso ao banheiro convencional. Fato que aconteceu pouquíssimas vezes para não incomodar. Mas a falta de acessibilidade não fora o único motivo, havia também que considerar a falta de sensibilidade e de preparo da parte administrativa das instituições. Pois indiferentes à situação de funcionários com uma realidade diferente, a exigência era a mesma. Não havia uma separação do que poderia ser exigido física e cognitivamente do funcionário.

O que mais me desagrada nesse caso é a postura dos empregadores causadora  desse efeito dominó. Eu entrei consciente do risco, era isso ou ficar sob a tutela de outros, sentada na sacada da casa fazendo tricô. Isso precisa mudar. A política de inclusão social como regra a ser seguida é mais uma lei dentre tantas que nascem para resgatar uma divida social com as minorias, mas que acabam causando o oposto do seu intuito. Se não há um acompanhamento de mudança de hábitos, de reeducação dos envolvidos, de conscientização do verdadeiro objetivo a ser alcançado. Ela continuará transformando o portador de deficiência física, na mente ressecada dos empregadores, em problemas em potencial. Pura e vã ignorância.

Sem preparo algum para lidar com portadores de deficiência, profissionais de todas as áreas formam uma rede de achismos e de compreensões diversificadas sobre o tema. Rede esta em que caímos sem salvação.

Por um lado funcionários que entendem a inclusão como uma dádiva ofertada para alguém se sentir menos desprezado. Entitulada de “solidariedade” é aplicada como caridade – a compra da passagem que os levara para os céus -, menosprezando assim, o verdadeiro valor do portador. Por outro lado, os que entendem a inclusão como a oportunidade do portador de deficiência demonstrar que é capaz de fazer tudo como todos os demais, baseada no discurso de que todos somos iguais, é constantemente exigido para que realizem tarefas nas mesmas condições que todos os demais. Menosprezando as condições físicas a que estão atrelados.

São pouquíssimas as instituições que realmente absorvem o portador de deficiência respeitando suas limitações físicas e potencializando o seu valor cognitivo, posso citar uma que realmente o faz ou pelo menos o fez na minha passagem profissional por ela. A UFAM foi uma que chegou a adaptar passarelas e trabalhar a conscientização dos funcionários a fim de acabar com o habito de usar os banheiros dos portadores como deposito de utensílios de limpeza. O professor Bruce Osborne, então pró-reitor de ensino e graduação chegou a colocar rampas, nivelar passagens entre uma e outra construção, para dar acesso às edificações da então pró-reitoria. A professora Arminda Mourão, foi a primeira em me dar a oportunidade de trabalhar, e mesmo sendo exigente ela sempre considerou as minhas limitações físicas, aproveitou ao máximo o meu potencial profissional durante a gestão dela na pró-reitoria de assuntos comunitários. O curso de letras também teve esse cuidado na minha passagem como professora de línguas e literaturas estrangeiras. A UFAM foi e ainda é um bom exemplo de inclusão social para portadores de deficiência física, salvo algumas excessões como a construção do campus que em seu projeto original não previu elevadores para o livre acesso de quem não pode subir escadas ou os prédios de odontologia e medicina que se encontram fora do campus e ainda contam com adaptações improvisadas.

Das que tiveram comportamento totalmente contrario não citarei nomes pois a maioria das pessoas que me conhecem sabem muito bem quais são. É o bastante.

A pior violência, lembrando conversa com o professor Gilson Monteiro, não está nos atos de preconceito, nem no ato de ter que tirar coragem para revivê-los ao fazer a denuncia, nem nas conseqüências, por vezes funestas, que decorrem desses atos. A pior de todas as violências é a da sociedade que não sabe se posicionar, nem para evitar o abuso, nem está preparada para receber a denuncia e, pior, marca a vitima colocando-a sob rótulos pejorativos que denigrem a sua imagem e fazem com que seja marginalizada como ato preventivo de “problemas em potencial”. É esse o custo mais alto que se paga pela reivindicação de direitos e pela denuncia dos abusos contra eles.

Um comentário:

  1. Infelizmente o portador de necessidades especiais ainda é tratado como coitadinho e o pior, e na maioria das vezes, menosprezado pela sociedade que não respeita os limites dessas pessoas, muito menos os lugares destinados a eles, como estacionamentos, assentos e outros.
    Parabéns pelo belíssimo texto.

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