E assim, como resultado de um espasmo súbito e estrondoso, o
que era luz tornou-se trevas. Era possível enxergar isso no rosto que
amanhecera claro e brilhante e agora se contraia enrijecendo todos seus músculos,
como se houvesse algo a lhe transbordar arrebentando-lhe todas as veias.
Sentia o seu coração pulsar-lhe nos ouvidos, seus lábios ficavam
mais secos a cada entrada de ar, havia começado a auxiliar a respiração pela
boca. Os olhos pareciam saltar-lhe fora de suas órbitas, a ponto de derramar-se
em prantos. Faria tudo para conter-se, afinal ninguém podia vê-la através do
telefone.
Ouvia atentamente tudo, cada palavra, cada entoação que era
dada a elas, o timbre como eram pronunciadas. Parecia poder ver o rosto da
pessoa do outro lado, estaria seria, teria procurado não só coragem, mas um
local adequado para sentar-se e proferir a sentença, quiçá tivesse ensaiado
tudo primeiro, conversado com alguém sobre a melhor maneira de arrancar o
coração de uma pessoa.
A cada palavra que lhe era dita sentia já ter ouvido tudo
ou talvez fosse por já estar à espera
desse momento. Tentou lembrar quando, em que milésimo de segundo, o seu sexto
sentido lhe havia avisado disso.
Que tonta era!
Mal conseguia separar as duas vozes, sua mente gritando lá
longe, e a voz falando do outro lado do telefone. Como seria bom um infarto
naquele momento. Por que o ser humano era tão resistente quando menos se quer?
- Por que não vem logo uma merda de infarto? Pensou. Por que os sentidos não,
de repente, simplesmente negam-lhe a consciência?
Não ouvir mais nada. Não ouvir as batidas estridentes de seu
coração, não ouvir o turbilhão de pensamentos, nem as memórias com todas as
conversas daquele e de outros dias, nem muito menos a voz doce que tanto amava
falando palavras tão duras e pesadas.
- De manhã cedo faltou-lhe algo na voz. Gritou-lhe a
lembrança.
Era como uma música tocada em descompasso, um tom a mais, um
a menos, uma leve queda no nível de oxigênio nos pulmões, alguma coisa. Era
perceptível o arrependimento ou quiçá a lamentação. Ambos haviam percebido o
descompasso e, enquanto procurava-se acertar o passo do outro lado do telefone,
deste lado só podia encontrar-se o silêncio. Um silêncio que era mais um grito
de socorro, um pedido de ajuda.
Não havia mais nada, só um silêncio eterno, desesperador até
q finalmente, alguns segundos depois surgiu uma conversa cheia de partículas
estrategicamente compostas. Segundas, terceiras, quartas, quintas intenções.
Ora dissimuladas, ora investigativas. A pior das conversas. Isenta de verdades
como um todo e ao mesmo tempo absolutamente descarada.
Do outro lado, uma tentativa de fuga. Desligar parecia boa
idéia. Então, ouviu-se uma desculpa qualquer, mas infrutífera. Deste lado a insistência
em continuar a conversa na espera de detectar a verdade.
Silêncio.......
Um longo, penetrante e estático silêncio.....
Depois uma conversa mole, o chavão carinhoso.
A minha sinceridade não combina com suas mentiras e suas
mentiras não combinam com sua índole. Por isso torna-se tão difícil e sofrido.
Novamente o tom de culpa.
Uma pergunta boba. Já almoçou?
Novamente o descompasso.
Agora era possível entender o porquê do tom incisivo desta
vez. Já havia uma tentativa de falar que fracasara. Aguentou estoicamente
sem interromper. Palavras vãs e inócuas juntamente com o choro foram parar no
estômago, optou novamente pelo silêncio. Uma analise rápida na memória trouxe à
tona a imagem de tudo sem precisar ver, nem ouvir mais nada. Estava claro
agora. Nada que fosse dito acrescentaria o que já era sabido. O que já fora
previsto.
Do outro lado da linha, a voz tornou-se parte da sonoplastia
do momento, como a chuva, como o vento passando pelas arvores, como os pássaros
em sua cotidiana algazarra, como o barulho das máquinas de ar condicionado. Em
primeiro plano, o pulsar do coração insistindo em notoriedade.
Escutei um gemido no fundo de tudo, um gemido longo e
profundo tal qual um mar escuro e sem fim, tentei adivinhar o que era e quanto
mais pensava nisso, mais ele invadia a cena, a voz no pequeno aparelho começou
a sumir, as memórias haviam desaparecido.
Tudo estava em silêncio como se o tempo tivesse, de repente,
parado. Só o gemido no fundo, algo que prendia a atenção no escuro, de onde
talvez surgisse. Os olhos fixos buscando se acostumar com a escuridão a fim de
poder enxergar, ele ficou mais alto e mais próximo, estava perto.
De repente a voz amada do outro lado do telefone, o ar
condicionado, o ventilador lá fora, o vento de chuva anunciando a solidão e o
gemido, mistura de dor e desespero a explodir-lhe as entranhas. O rosto
encharcado, a boca trêmula, a pele vermelha pela contração das veias e, é
claro, o coração num pulsar recalcitrante e impiedoso.