quinta-feira, 22 de março de 2012

UMA PROVIDENCIA / GELADA


Bom, apesar de ter perdido o texto que estava escrevendo anteriormente decide, pela importância do assunto, reescrevê-lo. Falava eu que a Clarice Lispector disse “Até cortar os nossos próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”. Mas o que nós entendemos por defeito? Tudo aquilo que é diferente da nossa percepção cotidiana e cultural. Então o que os outros chamam em nós de defeitos é o que nós temos de diferente deles.

Pensei neste ponto porque apesar de ter poucos/longos anos já tenho pose de uma personalidade só minha. Talvez pelo fato de ter tomado as rédeas da minha vida cedo, considerando a situação em que me encontro. Neste caminho de subidas e descidas já passei vitoriosa por situações que poucas pessoas teriam coragem de passar. Quem me conhece de verdade e acompanha minha vida sabe muito bem disso. Nela aprendi, tarde, mas aprendi, que a melhor atitude a se tomar na vida é ser quem você é. Pacote completo, sem se preocupar em atender às expectativas de ninguém.

Por tudo isso, posso afirmar que sou Humana, demasiado humana, como meu caro Friedrich diria. O que significa que ainda sofro, ao me deparar com situações onde é fácil perceber o quanto precisamos, nós raça humana, crescer cognitivamente para alcançar um grau, onde o respeito mútuo impere. Quanto falta para que possamos nos deparar com situações diferenciadas e esboçar uma reação autêntica e verdadeira que corresponda ao discurso que propagamos. Que fuja do que nos é imposto por chavões padronizados que sob rótulos como o “politicamente correto” minam a mente da massa para ser conduzida.

Hoje, foi um dia qualquer na minha vida, e teria sido mais um, nas diligências dos quefazeres da casa, das leituras, do exercício de redação, dos trabalhos que costumam pagar minhas contas, se o meu telefone celular não tivesse a sua tela inutilizada. Não dava pra ligar pra ninguém, mas qual o problema? Pessoas como eu, estão preparadas para esse tipo de situações. Tenho a internet pensei. Ao pedir ajuda num dos sites de relacionamento, para ligar por mim, deparei com dois contatos com a mesma postura. Um deles simplesmente mentiu dizendo que havia ligado sem sucesso, o outro disse – Taí, uma coisa que não se vê todo dia! O que? Indaguei – alguém pedindo na internet para ligar na distribuidora para pedir cerveja.

Hoje, situações de preconceito não me afetam tanto como antes, não me afetam, assim como não me surpreendem nem mesmo quando vem de pessoas “esclarecidas” ou que pelo menos se espera que o sejam. Hoje, eu aproveito essas situações para analisar o andamento evolutivo do homo sapiens, da política no sentido próprio de organização das polis, do discurso social, do discurso das palavras, das atitudes, da coerência ou incoerência de ambos, do discurso do silencio e até da velocidade que a resposta vem, mesmo quando não chega.


Esta visto que ainda pesamos situações na balança de uma cultura de erros. A nossa boca é larga para pintar uma imagem nossa perante a sociedade que atenda ao que os outros esperam de nós, mas é curta e torpe em casos inesperados. Quando acontece uma situação diferente ficamos perdidos, buscamos referencias no passado de alguém para ver qual a atitude que deve ser tomada. E nada, não se encontra nada. É nesse vazio que nasce o preconceito porque pegamos referencias de hábitos equivocados, referencias que nós mesmos condenamos.

A imagem estereotipada de pessoas com limitações físicas que já foi falado no meu blog é uma delas. Pedi para ligar na distribuidora para pedir cerveja, e? Pergunto eu. Deficiente não bebe? Não fuma? Não se droga? Não se prostitui? Não ronca? Não solta pum? Não arrota? Não transa? Essa é a minha preferida, dentre os preconceitos. As pessoas acham que deficiente não transa. Pois ele faz tudo isso e muito mais. As vezes, até melhor. No meu caso, só tiraria fumar, me drogar e me prostituir, não que eu não tenha já tenha fumado, fumei muito e Dervi ainda, experimentado drogas, e muito embora não condene não tive necessidade de me prostituír. De resto, meus amigos, eu já fiz tudo isso e posso aditivar mais alguns itens. Como pilotar ultraleve, sair de mochila nas costas para conhecer o nordeste de muletas, ter e criar um filho sozinha, e tantas outras coisas que fiz e faço de diferente. Como cultivar a solidão. Quantas dessas coisas você faria nas minhas condições? Eu mesma respondo. Pouquíssimas.

Sou diferente em tudo. Diferente do “modelito” que a hipocrisia humana moldou. Mas a diferença maior é que nós, portadores de deficiência física, precisamos adaptar-nos a uma sociedade que se nega a nos comportar. E, olha ai, fazemos isso também e saímos vitoriosos. Agora me dêem licença que vou, depois dessa, tomar uma bem merecida  “providencia/gelada”. Como diz meu sábio e caro professor Odenildo Senna.

sexta-feira, 16 de março de 2012

A CAZUELA DE DOMINGO


“El problema de picar cebollas, no es que te hagan llorar, sino que cuando comienzas ya no quieres parar” com esta sentença Laura Esquivel começa a descrever a história de Tita – personagem principal do livro “Como agua para chocolate”. Com ele é descrita também a importancia cultural que a cozinha - culinária e ambiente - ocupa na vida dos latinoamericanos.
 
Em casa, assim como no filme, a cozinha era sempre o meu lugar preferido, era quentinho e estávamos sempre a ajudar na rotina dela. Descascar abas, batatas, tirar ervilhas das vagens, e biliscar os grãos de milho depois de hidratados, lavar bem a quinua para tirar-lhe a terra antes de cozinhar, o chuñu também era deixado de molho para reidratá-lo e poder tirar a casca antes de cozinhá-lo. As tarefas mais árduas resultavam sempre nos pratos mais gostosos. Descascar amendoim e grão-de-bico crus, era nesse então, um castigo para aquele que teria que dar conta da tarefa, um a um até encher uma panela pequena de cada, toda semana a tarefa era a mesma, Foi nesse meio que aprendi a cozinhar.

A Cazuela de todos os domingos era o grande acontecimento da semana. O amendoim e o grão-de-bico eram deixados de molho dois dias antes de cozinhá-los para que no sábado fosse mais fácil de tirar suas cascas. O almoço de domingo, quando a família toda se reunia à mesa, tinha esse prato como tradição. Os preparativos começavam na sexta, deixando de molho os dois grãos, comprando todas as batatas necessárias, parte mais atrativa do prato – as batatas fritas-, que sempre eram colocadas em cima da sopa. No sábado lá estávamos nós descascando-os entre conversas, piadas, competições de quem descascava mais, mais rápido ou melhor.

Minha mãe, minhas irmãs e eu colocávamos na mesa pequenas quantias dos grãos para começar a tarefa. Uma vez terminada a conversa, esgotadas as risadas, descascados os grãos, deixávamos tudo na geladeira para poder dormir e somente no dia seguinte começar a preparação. Acordávamos cedo e minha mãe já estava na cozinha acompanhada da empregada da casa que já conhecia bem esses preparos, descascávamos as batatas e cortávamos todas para ir fritando enquanto preparávamos a sopa. O frango bem cortado, limpo e escaldado, as cenouras raladas, as cebolas cortadas em cubinhos, o orégano que lhe dava aquele cheiro especial.

Quando a preparação começava eu ficava olhando a minha mãe, o cuidado e carinho somados a habilidade de manipular e calcular os cozimentos. O grão-de-bico sempre era um mistério para minha cabecinha. Não entendia como ela conseguia saber quando estava pronto, mas ela o tirava da panela de pressão no momento exato, nem muito cozido, nem cru, dessa singela rotina ficou meu vicio de comê-lo até hoje como se come pipoca, do jeitinho que sai da panela. Via minha mãe fritando as verduras com um tanto de sal e percebia já, desde esse então, que dentre todas elas a que tinha maior relevância era, com certeza, a cenoura ralada juntamente com o orégano regado no meio. Era esse o cheiro da cozinha da minha mãe, cheiro de verdura refogada com orégano.

Depois ela pegava o amendoim já descascado para triturá-lo num liquidificador até virar um creme branco adicionando de a pouco, água suficiente com o devido cuidado para não deixá-lo muito aguado. Então o colocava junto com a verdura, misturava bem e deixava ele cozinhar um tempinho, acrescentando a água do grão-de-bico toda vez que parecia estar secando demais. Sopa de amendoim tem que ficar mexendo para ela não grudar no fundo da panela, aprendi. Logo colocava todo o restante da água do grão-de-bico e o frango em pedaços generosos e bem cortados, em seguida acrescentava arroz, “uma mão por cada pessoa” ela me dizia. Depois era só esperar mexendo de vez em quando.  

Quando finalmente o amendoim havia incorporado, o arroz tinha cozinhado e o frango estava cozido, ela jogava o grão-de-bico, testava o sabor e pedia minha aprovação. Colocávamos as batatas fritas na mesa, um pouco de salsinha bem picada num recipiente, pão cortado e a “llajua”. Um molho de pimenta feito com “locoto” e tomate que eu aprendi a preparar numa pedra enorme no pátio de casa – el batán -. Todos sentávamos na mesa ansiosos para comer a sopa tão esperada. Minha mãe servia um a um os pratos, regando eles de salsinha e batata antes de passá-los, enquanto meu pai fiscalizava que ninguém começasse a comer antes de todos estarmos sentados e servidos. Cinco filhos sentados à mesa sendo constantemente chamados à atenção com uma batidinha da colher no prato, era o sino que sem precisar de palavras dizia, fica quieto! Senta direito! Tira o cotovelo da mesa! Não fala de boca cheia! Não exagera na risada! Olha a briga! Nos domingos de Cazuela.

Hoje a Cazuela ainda é parte importante na família, pais, filhos e netos se sentam a comê-la numa mesa larga como o abraço do meu pai. Entrementes, descascar amendoim não é mais uma reunião de meninos ajudando no quefazer da rotina domingueira ao lado da mãe, tornou-se para mim como para minha mãe um exercício solitário de paciência, um momento de meditação, o grão-de-bico não é mais descascado, pois reza a ciência que o seu valor está na casca, o frango não é mais cortado generosamente e com cuidado, ele vem em pacotes desencantados, a batata tem resistido na minha cozinha. Sempre digo que a batata está para o boliviano como a farinha está para o brasileiro, tornei-me especialista em batata frita e outros tipos de preparo para ela. Quiçá as próximas gerações não lembrem da Cazuela, mas para mim ainda tem sabor e cheiro de colo de pai e mãe, tem seu encanto. 

sábado, 3 de março de 2012

PRAZO DE VALIDADE


Tenho relutado tanto, aberto inúmeras páginas em branco para finalmente escrever da melhor forma possível o que tem tomado a minha alma como refém. Comecei de um lado, depois de outro e ainda não sei se o que me corrói é a falta da palavra exata para começar ou o ângulo exato para focar. Ouvindo a Marilena Chauí, me veio um lampejo que aparenta ser uma janela para texto tão remoído.

Criou-se um imaginário coletivo que remonta já longa data, de certas inverdades que tomam a nossa mente e pautam os nossos pensamentos.  Olhamos o mundo por meio delas e sem notar caímos em julgamentos e condenações quais beatas a repetir salmos que mal compreendem. Hoje os veículos mais lotados da internet ocupam um cargo proeminente para a perpetuação e construção desse imaginário e o homem se pega não mais seguindo o que sente, mas seguindo uma línea de raciocínio sob o aval dos que julgá-lo-ão  em sua rede de relacionamento.

Dentro desse imaginário, embora de longa data, uma imagem circula na pauta “setting” no meio de tantas outras – a solidariedade -, a exigência não como um sentimento traduzido em ação, mas como uma dívida social a que todos estamos presos. Nessa linha de pensamento todos se comovem forçadamente, ao deparar-se por exemplo, com crianças mal tratadas, abandonadas, violentadas, desnutridas ou que sofrem de alguma doença. Como é bonito ver uma criança – um anjo virtuoso -, mais enternecedor ainda se ela for deficiente física, comove qualquer coração. Foi o que vimos acontecer quando a presidenta Dilma emocionou-se ao ver a filha do deputado Romário. Tirando a análise do marqueting estratégico de ambos, foi pura emoção.

É certo que essa empatia faz parte da inerência humana, o homem nasce como qualquer outro animal com a tendência natural de proteger a cria de sua raça. Excetuando alguns casos. Mas o que já é parte composta por nós do imaginário coletivo é a limitação dessa condolência para uma certa faixa etária – crianças e adolescentes. Varias vezes me perguntei se esse era um prazo de validade para o ser humano. Existe um vácuo entre o adolescente e o velho que merecem condolência.  O adulto fica onde? Apadrinha-se a criança e o adolescente para logo jogá-los à sua sorte, sem eira nem beira? Quiçá porque uma vez bem preparado o homem na fase adulta está pronto para o mundo regrado e bom que o espera? Depois retoma-se os restos deste homem para novamente encaixá-lo no discurso da “solidariedade”, na fase da velhice. Qual é a linha de raciocínio que se segue? Ou é o mero desencanto que torna o anjo em demônio?  “Facil é amar a humanidade, deficil é amar o homem”.
Imaginamos uma criança bonita, todas o são, seja ela portadora de qualquer patologia ou não. Porque a beleza não esta na pessoa, mas na promessa de um recomeço. A imaginamos assim porque ainda está sob o nosso comando, sob nossa tutela, não possui opinião formada. Imaginamos para ela um futuro promissor, jogamos nossas expectativas em cima e imaginamos como ela virá a ser. Uma médica que vai salvar vidas, uma escritora de romances de sucesso. Uma cantora, uma atriz, um comandante da nação, um grande pensador. Qualquer coisa que um dia sonhamos poder ter sido. Mas aí descobrimos que ela é tão comum quanto nós o somos. Tão mortal quanto nós o somos, tão cheia de defeitos, de medos, de ambições, de fraquezas como nós o somos e não a perdoamos por não ter se eternizado “anjo”. Já na adolescência elas dão sinais de terem vida própria e o inconformismo com isso nos sufoca.

Imperdoável para quem não tem nenhuma patologia e pode simplesmente partir ao se deparar com a decepção que provocou. É só botar um pé atrás do outro e seguir o caminho. Mais imperdoável quando ela tem alguma limitação física e se encontra refém dela. Não pode atender aos sonhos dos demais, não pode partir. E se vê obrigada a ficar e conviver com o desencanto e a angústia dos outros. Eles a mantêm presa para atender à “solidariedade” promulgada pela sociedade. Um comprimento de responsabilidade. Sem perceber o dano que é feito e o erro de nunca ter aceitado ela por completo. Um kit de surpresas completo como nascemos todos os seres humanos.

Uma pessoa portadora de deficiência, no imaginário que criamos, é sempre uma pessoa virtuosa, batalhadora, forte, q supera obstáculos, que não se abate, que segue seu rumo obedecendo as normas, passa pela vida sem maiores percalços sentimentais. Dela não se esperam lagrimas, desesperos, desesperanças, gritos. Não podemos imaginá-la com defeitos, sendo irônica, soberba, escandalosa, fala baixo e ri mais baixo ainda, não tem vícios, não fuma, não bebe, não reclama, apenas agüenta, não sai de noite na procura das baladas, não transa nem só por transar, alias ela não sente vontade de transar. São anjos asexuados. Como se a própria deficiência não fosse um direito invadido, Tira-se delas o direito até de errar.

E sabem, talvez sejam anjos mesmo, quando conseguem tirar ânimo de onde só tem desânimo, tirar coragem de onde foi tudo jogado fora, quando conseguem, a despeito de todos os seus direitos usurpados, sorrir mesmo assim. Traduzindo numa linguagem tão singular o desejo de poder ser quem realmente são. Somos capazes de mudar esse imaginário?  Anular esse prazo de validade e estender a condolência para todas as fases dos seres humanos? Reintegrar a pose da liberdade de expressão daqueles que não querem botar a mascara de “anjos virtuosos” só para atender as expectativas sociais? Somos capazes de amar as crianças até quando ficam velhas? Amá-las mais ainda quando erram, quando crescem e viram adultos mal preparados como nós? Somos capazes de tirar esse pano de fundo da solidariedade que julga e condena os pobres, os miseráveis, os infelizes, os mal amados, os mal preparados, os intratáveis, a um futuro de lamentações, assistencialismo e penúrias? Respeitá-los dentro de suas limitações, quer sejam físicas, econômicas ou cognitivas porque o verdadeiro sentido da solidariedade é esse.