Tenho relutado tanto, aberto inúmeras páginas em branco para
finalmente escrever da melhor forma possível o que tem tomado a minha alma como
refém. Comecei de um lado, depois de outro e ainda não sei se o que me corrói é
a falta da palavra exata para começar ou o ângulo exato para focar. Ouvindo a
Marilena Chauí, me veio um lampejo que aparenta ser uma janela para texto tão
remoído.
Criou-se um imaginário coletivo que remonta já longa data, de
certas inverdades que tomam a nossa mente e pautam os nossos pensamentos. Olhamos o mundo por meio delas e sem notar
caímos em julgamentos e condenações quais beatas a repetir salmos que mal
compreendem. Hoje os veículos mais lotados da internet ocupam um cargo
proeminente para a perpetuação e construção desse imaginário e o homem se pega não
mais seguindo o que sente, mas seguindo uma línea de raciocínio sob o aval dos que
julgá-lo-ão em sua rede de
relacionamento.
Dentro desse imaginário, embora de longa data, uma imagem circula
na pauta “setting” no meio de tantas outras – a solidariedade -, a exigência
não como um sentimento traduzido em ação, mas como uma dívida social a que
todos estamos presos. Nessa linha de pensamento todos se comovem forçadamente,
ao deparar-se por exemplo, com crianças mal tratadas, abandonadas, violentadas,
desnutridas ou que sofrem de alguma doença. Como é bonito ver uma criança – um
anjo virtuoso -, mais enternecedor ainda se ela for deficiente física, comove
qualquer coração. Foi o que vimos acontecer quando a presidenta Dilma emocionou-se
ao ver a filha do deputado Romário. Tirando a análise do marqueting estratégico
de ambos, foi pura emoção.
É certo que essa empatia faz parte da inerência humana, o
homem nasce como qualquer outro animal com a tendência natural de proteger a
cria de sua raça. Excetuando alguns casos. Mas o que já é parte composta por
nós do imaginário coletivo é a limitação dessa condolência para uma certa faixa
etária – crianças e adolescentes. Varias vezes me perguntei se esse era um
prazo de validade para o ser humano. Existe um vácuo entre o adolescente e o
velho que merecem condolência. O adulto
fica onde? Apadrinha-se a criança e o adolescente para logo jogá-los à sua
sorte, sem eira nem beira? Quiçá porque uma vez bem preparado o homem na fase
adulta está pronto para o mundo regrado e bom que o espera? Depois retoma-se os
restos deste homem para novamente encaixá-lo no discurso da “solidariedade”, na
fase da velhice. Qual é a linha de raciocínio que se segue? Ou é o mero desencanto
que torna o anjo em demônio? “Facil é
amar a humanidade, deficil é amar o homem”.
Imaginamos uma criança bonita, todas o são, seja ela
portadora de qualquer patologia ou não. Porque a beleza não esta na pessoa, mas
na promessa de um recomeço. A imaginamos assim porque ainda está sob o nosso
comando, sob nossa tutela, não possui opinião formada. Imaginamos para ela um
futuro promissor, jogamos nossas expectativas em cima e imaginamos como ela
virá a ser. Uma médica que vai salvar vidas, uma escritora de romances de sucesso.
Uma cantora, uma atriz, um comandante da nação, um grande pensador. Qualquer
coisa que um dia sonhamos poder ter sido. Mas aí descobrimos que ela é tão
comum quanto nós o somos. Tão mortal quanto nós o somos, tão cheia de defeitos,
de medos, de ambições, de fraquezas como nós o somos e não a perdoamos por não
ter se eternizado “anjo”. Já na adolescência elas dão sinais de terem vida
própria e o inconformismo com isso nos sufoca.
Imperdoável para quem não tem nenhuma patologia e pode
simplesmente partir ao se deparar com a decepção que provocou. É só botar um pé
atrás do outro e seguir o caminho. Mais imperdoável quando ela tem alguma limitação
física e se encontra refém dela. Não pode atender aos sonhos dos demais, não
pode partir. E se vê obrigada a ficar e conviver com o desencanto e a angústia
dos outros. Eles a mantêm presa para atender à “solidariedade” promulgada pela
sociedade. Um comprimento de responsabilidade. Sem perceber o dano que é feito
e o erro de nunca ter aceitado ela por completo. Um kit de surpresas completo
como nascemos todos os seres humanos.
Uma pessoa portadora de deficiência, no imaginário que
criamos, é sempre uma pessoa virtuosa, batalhadora, forte, q supera obstáculos,
que não se abate, que segue seu rumo obedecendo as normas, passa pela vida sem
maiores percalços sentimentais. Dela não se esperam lagrimas, desesperos,
desesperanças, gritos. Não podemos imaginá-la com defeitos, sendo irônica,
soberba, escandalosa, fala baixo e ri mais baixo ainda, não tem vícios, não
fuma, não bebe, não reclama, apenas agüenta, não sai de noite na procura das baladas,
não transa nem só por transar, alias ela não sente vontade de transar. São
anjos asexuados. Como se a própria deficiência não fosse um direito invadido,
Tira-se delas o direito até de errar.
E sabem, talvez sejam anjos mesmo, quando conseguem tirar
ânimo de onde só tem desânimo, tirar coragem de onde foi tudo jogado fora,
quando conseguem, a despeito de todos os seus direitos usurpados, sorrir mesmo
assim. Traduzindo numa linguagem tão singular o desejo de poder ser quem
realmente são. Somos capazes de mudar esse imaginário? Anular esse prazo de validade e estender a
condolência para todas as fases dos seres humanos? Reintegrar a pose da
liberdade de expressão daqueles que não querem botar a mascara de “anjos virtuosos”
só para atender as expectativas sociais? Somos capazes de amar as crianças até
quando ficam velhas? Amá-las mais ainda quando erram, quando crescem e viram
adultos mal preparados como nós? Somos capazes de tirar esse pano de fundo da
solidariedade que julga e condena os pobres, os miseráveis, os infelizes, os
mal amados, os mal preparados, os intratáveis, a um futuro de lamentações,
assistencialismo e penúrias? Respeitá-los dentro de suas limitações, quer sejam
físicas, econômicas ou cognitivas porque o verdadeiro sentido da solidariedade
é esse.
MUITO BOA A MATERIA. TU TEM CLASSE PARA ESCREVER, CONTINUA. TEM MUITO CAMINHO PARA ANDAR. LEMBRA QUE OS CAMINHOS NAO APARECEM, OS CAMINHOS SAO FEITOS PELOS CAMINHANTES.
ResponderExcluirUM ABRACO
PAPAE
golpe a golpe, beso a beso, se camino al andar......
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