sexta-feira, 16 de março de 2012

A CAZUELA DE DOMINGO


“El problema de picar cebollas, no es que te hagan llorar, sino que cuando comienzas ya no quieres parar” com esta sentença Laura Esquivel começa a descrever a história de Tita – personagem principal do livro “Como agua para chocolate”. Com ele é descrita também a importancia cultural que a cozinha - culinária e ambiente - ocupa na vida dos latinoamericanos.
 
Em casa, assim como no filme, a cozinha era sempre o meu lugar preferido, era quentinho e estávamos sempre a ajudar na rotina dela. Descascar abas, batatas, tirar ervilhas das vagens, e biliscar os grãos de milho depois de hidratados, lavar bem a quinua para tirar-lhe a terra antes de cozinhar, o chuñu também era deixado de molho para reidratá-lo e poder tirar a casca antes de cozinhá-lo. As tarefas mais árduas resultavam sempre nos pratos mais gostosos. Descascar amendoim e grão-de-bico crus, era nesse então, um castigo para aquele que teria que dar conta da tarefa, um a um até encher uma panela pequena de cada, toda semana a tarefa era a mesma, Foi nesse meio que aprendi a cozinhar.

A Cazuela de todos os domingos era o grande acontecimento da semana. O amendoim e o grão-de-bico eram deixados de molho dois dias antes de cozinhá-los para que no sábado fosse mais fácil de tirar suas cascas. O almoço de domingo, quando a família toda se reunia à mesa, tinha esse prato como tradição. Os preparativos começavam na sexta, deixando de molho os dois grãos, comprando todas as batatas necessárias, parte mais atrativa do prato – as batatas fritas-, que sempre eram colocadas em cima da sopa. No sábado lá estávamos nós descascando-os entre conversas, piadas, competições de quem descascava mais, mais rápido ou melhor.

Minha mãe, minhas irmãs e eu colocávamos na mesa pequenas quantias dos grãos para começar a tarefa. Uma vez terminada a conversa, esgotadas as risadas, descascados os grãos, deixávamos tudo na geladeira para poder dormir e somente no dia seguinte começar a preparação. Acordávamos cedo e minha mãe já estava na cozinha acompanhada da empregada da casa que já conhecia bem esses preparos, descascávamos as batatas e cortávamos todas para ir fritando enquanto preparávamos a sopa. O frango bem cortado, limpo e escaldado, as cenouras raladas, as cebolas cortadas em cubinhos, o orégano que lhe dava aquele cheiro especial.

Quando a preparação começava eu ficava olhando a minha mãe, o cuidado e carinho somados a habilidade de manipular e calcular os cozimentos. O grão-de-bico sempre era um mistério para minha cabecinha. Não entendia como ela conseguia saber quando estava pronto, mas ela o tirava da panela de pressão no momento exato, nem muito cozido, nem cru, dessa singela rotina ficou meu vicio de comê-lo até hoje como se come pipoca, do jeitinho que sai da panela. Via minha mãe fritando as verduras com um tanto de sal e percebia já, desde esse então, que dentre todas elas a que tinha maior relevância era, com certeza, a cenoura ralada juntamente com o orégano regado no meio. Era esse o cheiro da cozinha da minha mãe, cheiro de verdura refogada com orégano.

Depois ela pegava o amendoim já descascado para triturá-lo num liquidificador até virar um creme branco adicionando de a pouco, água suficiente com o devido cuidado para não deixá-lo muito aguado. Então o colocava junto com a verdura, misturava bem e deixava ele cozinhar um tempinho, acrescentando a água do grão-de-bico toda vez que parecia estar secando demais. Sopa de amendoim tem que ficar mexendo para ela não grudar no fundo da panela, aprendi. Logo colocava todo o restante da água do grão-de-bico e o frango em pedaços generosos e bem cortados, em seguida acrescentava arroz, “uma mão por cada pessoa” ela me dizia. Depois era só esperar mexendo de vez em quando.  

Quando finalmente o amendoim havia incorporado, o arroz tinha cozinhado e o frango estava cozido, ela jogava o grão-de-bico, testava o sabor e pedia minha aprovação. Colocávamos as batatas fritas na mesa, um pouco de salsinha bem picada num recipiente, pão cortado e a “llajua”. Um molho de pimenta feito com “locoto” e tomate que eu aprendi a preparar numa pedra enorme no pátio de casa – el batán -. Todos sentávamos na mesa ansiosos para comer a sopa tão esperada. Minha mãe servia um a um os pratos, regando eles de salsinha e batata antes de passá-los, enquanto meu pai fiscalizava que ninguém começasse a comer antes de todos estarmos sentados e servidos. Cinco filhos sentados à mesa sendo constantemente chamados à atenção com uma batidinha da colher no prato, era o sino que sem precisar de palavras dizia, fica quieto! Senta direito! Tira o cotovelo da mesa! Não fala de boca cheia! Não exagera na risada! Olha a briga! Nos domingos de Cazuela.

Hoje a Cazuela ainda é parte importante na família, pais, filhos e netos se sentam a comê-la numa mesa larga como o abraço do meu pai. Entrementes, descascar amendoim não é mais uma reunião de meninos ajudando no quefazer da rotina domingueira ao lado da mãe, tornou-se para mim como para minha mãe um exercício solitário de paciência, um momento de meditação, o grão-de-bico não é mais descascado, pois reza a ciência que o seu valor está na casca, o frango não é mais cortado generosamente e com cuidado, ele vem em pacotes desencantados, a batata tem resistido na minha cozinha. Sempre digo que a batata está para o boliviano como a farinha está para o brasileiro, tornei-me especialista em batata frita e outros tipos de preparo para ela. Quiçá as próximas gerações não lembrem da Cazuela, mas para mim ainda tem sabor e cheiro de colo de pai e mãe, tem seu encanto. 

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